Celina Brod

Lula: entre o juízo final e a aula de natação

Celina Brod
Mestre e doutoranda em Filosofia, Ética pela UFPel
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Semana passada começou o semestre por aqui. A universidade ganhou movimento e perdeu o silêncio das ruelas entre os prédios e departamentos. Vários mundos acontecendo nos corredores, litros de café, múltiplos sotaques e desejos. O silêncio volta apenas dentro da sala de aula, minutos antes do professor expor suas intenções, direções e planos. Ninguém mais fala, retumba somente a atenção expectante dos alunos. No curso interdisciplinar de Filosofia, Política e Economia, o professor começou a apresentação da aula com uma palavra: polycrisis.

Um termo bonito para bagunça generalizada, uma palavra para dar conta do caos espalhado. Há várias crises explodindo em cada canto do planeta: crises políticas, sanitárias, econômicas, climáticas, crises por causa da crise. Cada micro evento catastrófico afeta outra crise que acontece na ponta de outro lugar. Como uma rede, as crises são linhas que se se conectam e cruzam, gerando perguntas para velhos e novos problemas. A guerra da Rússia contra Ucrânia, Covid-19 na China, mundo pós-pandemia, mudanças climáticas e tudo mais que foge à ordem regular dos fatos. É como se estivéssemos dentro de um liquidificador de tensões, cada uma delas com um tipo de sofrimento, medo e incertezas.

Enquanto escrevo, os cientistas calculam as tensões que aproximam o relógio "Juízo Final" da meia-noite. O ponteiro foi movido no dia 24 de janeiro. A parti de hoje, somente 90 segundos simbólicos nos separam de uma possível catástrofe global, alertam os cientistas atômicos. Sinceramente, eu preferia não saber dessa contagem regressiva. Aquilo que não chega aos nossos olhos ou ouvidos é como se não existisse. São tantos colapsos convergindo que viver sem às vezes negar o real brutal é impossível. "A Alemanha declarou Guerra à Rússia, à tarde fui nadar", escreveu Kafka em seu diário. Assim como Kafka, apesar dos pesares, cada um tem sua rotina para cuidar e crises subjetivas para apaziguar.

No Brasil, foi a crise humanitária dos yanomamis que recentemente entrou no nosso feed de notícias. Quem, cujo coração ainda pulsa, aguenta ver aquelas cenas? Ver crianças sofrendo de forma lenta e brutal, corpos sem energia, frágeis e tristes? As imagens chocantes impulsionaram ação coletiva para socorrer uma comunidade que foi estrangulada por interesses medíocres. O novo governo alivia a sensação de impotência de quem olha aquela dor e não consegue estender a mão. Lula acerta em mobilizar agentes para resolver com rapidez a agonia e abandono dos índios. A última eleição, com a frente ampla, também era sobre isso. A maioria votou pelos direitos humanos, liberdade, a confiança nas instituições e pela democracia, o sistema político que melhor, embora não perfeitamente, entrega justiça.

Por que, então, Lula insiste em chamar de autodeterminação regimes políticos em que as pessoas não determinam seus destinos e têm os direitos humanos desrespeitados? Como pode alguém acreditar na importância dos direitos humanos e ao mesmo tempo ser indulgente com a falta deles em outro lugar? Será que Lula fala e age irracionalmente?

Arrisco uma hipótese: talvez Lula seja pragmaticamente racional e epistemicamente irracional. Racional porque ele ignora as fortes evidências em nome de um resultado prático: não frustrar sua base militante, não gerar desgosto com parceiros ideológicos ou não causar conflito. Irracional porque ele afirma algo contradizendo as evidências que mostram que estes países pisoteiam valores democráticos. Racional ou irracional, o problema é que negar as evidências em nome de objetivo ou simbolismo ideológico é abrir a porta para outros negacionismos. Talvez Lula queira agir como Kafka, ignorar a realidade para ir a aula de natação. Porém, ele é agora líder de uma nação e deve comprometer-se com os fatos. Isso significa saber a hora de elogiar e, principalmente, o momento de criticar.

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